a maldição do nascimento
um cliente perguntava-me: "então afinal o que é realmente meu? somente meu?" e esta é uma pergunta verdadeiramente inquietante.
responder-lhe seria falar-lhe de como o desenvolvimento é tão complexo que não existe uma resposta certeira ao que me perguntara. responder-lhe seria contar-lhe que somos mais dos outros do que aquilo que gostaríamos de admitir. responder-lhe seria falar-lhe de como a imaturidade com a qual nascemos tanto pode ser uma bênção como uma maldição. responder-lhe seria relembrar-lhe de que existe um certo grau de impotência na vida, e isso é difícil de digerir em qualquer idade.
a minha resposta talvez não o tenha satisfeito, mas a questão ficou a marinar na minha mente até ler o livro "talvez devesses falar com alguém" que já aqui mencionei num artigo anterior...
a ideia de que somos moldados pelo que nos rodeia pode tornar-se assustadora. a ideia de que os outros têm este nível de impacto na forma como as ligações cerebrais que ditam as nossas reações e respostas ao mundo se formam, pode ser inquietante. talvez o mais inquietante de tudo isso seja esta consciência de uma certa impotência que está inerente ao processo de crescimento, como se não tivéssemos uma palavra a dizer sobre a nossa própria vida.
este sentimento de que não temos influência no nosso crescimento pode tornar-se verdadeiramente revoltante. especialmente, num processo terapêutico onde parece que cada canto da nossa vida é pensado com outros olhos e nos deparamos com tantas situações que gostávamos que tivessem sido diferentes. esta zanga pode acumular-se e consumir-nos, prender-nos a um passado que desejávamos que tivesse sido diferente.
as nossas histórias afetam a nossa forma de pensar, sentir e o nosso comportamento e (...) a dado ponto das nossas vidas temos de abandonar a fantasia de criar um passado melhor (Lori Gottlieb)
o trabalho num processo terapêutico passa por olhar para este passado que moldou quem hoje somos e, essencialmente, mudar a forma como integramos essas experiências na pessoa que somos e que queremos ser. prende-se com sair do lugar de impotência e inatividade perante o que vivemos (talvez como fizemos desde o primeiro momento mas que, a nossa sociedade castradora, nos convenceu de que não podíamos fazer), e agarrar (de novo) o leme da nossa vida e procurar ser ativos nela.
deixa cair a ideia de que curar é esquecer.
o verdadeiro resultado é deixar
de reagir a gatilhos antigos
com a mesma intensidade de antes.
as memórias permanecem,
mas já não têm o mesmo poder
sobre a tua mente.
(Yung Pueblo)
às vezes, é fácil esquecer que temos este poder e responsabilidade nas mãos. às vezes, é fácil cairmos na narrativa que contamos a nós próprios na qual somos uma vitima na nossa própria vida e que nada podemos fazer quanto a isso. às vezes, é fácil deixarmo-nos levar pelas crenças que criámos sobre a nossa impotência e falta de controlo sobre o desfecho da nossa vida. às vezes, presos a todas estas ideias de validade expirada e agarrados às nossas inseguranças, imaginar um futuro diferente torna-se não só impensável como assustador.
é certo que não podemos mudar o nosso passado. não podemos mudar a década em que vivemos. não podemos mudar o país em que vivemos. não podemos mudar a família onde crescemos. não podemos mudar os pais que tivemos. nada disto podemos mudar. somente aquilo que, no aqui e agora, sentimos e fazemos com tudo o que vivemos. por isso relembro: hoje, enquanto adultos, nenhum de nós terá de sucumbir-se a este sentimento de impotência, uma vez que existe sempre algo que podemos fazer quanto ao nosso futuro.
a nossa visão do futuro pode ser tão difícil de mudar como a do passado (Lori Gottlieb)
bibliografia:
livro - Talvez devesses falar com alguém, Lori Gottlieb
livro - Conexão e clareza, Yung Pueblo