
a (in)consciência da infância
Geralmente, não temos consciência de uma coisa quando é a continuação da nossa infância. Alice Miller
li esta frase no livro As Musas (que recomendo a qualquer um que se queira deixar surpreender pela mente humana) fez-me voar e relembrar as pessoas que acompanho e como o processo terapêutico é incrível.

retomando o último texto que escrevi, o bebé humano é um projeto inacabado, um eterno prematuro (uma vez que uma mãe humana não conseguiria sobreviver a um parto de um bebé completamente desenvolvido) pelo que o cérebro encontra-se ainda em desenvolvimento quando nasce aos 9 meses de gestação.
é esta imaturidade cerebral que se pensa que permitiu que a espécie humana tenha conseguido desenvolver-se de tal forma que se afastou das restantes espécies. esta prematuridade ao nascimento permitiu que o nosso cérebro se desenvolvesse não só in útero, como acontece nas restantes espécies, mas também cá fora, com e através do ambiente (social) em que cada bebé se encontra. isto quer dizer que, o nosso cérebro vai sendo moldado pelas experiências in útero e também por tudo aquilo que experiencia depois de nascer. tudo isto, juntamente com a sua composição genética, resultará nos traços daquele individuo especificamente.
percebemos assim a importância do outro no nosso desenvolvimento. cada um de nós desenvolve-se em e na relação com os outros. aprendemos sobre quem somos nos olhos de quem nos rodeia. é nos olhos das pessoas que mais amamos que vamos saber o que valemos, o nosso potencial, os nossos gostos e as nossas competências. mais, são também as nossas pessoas que nos mostram o mundo e os outros. são o primeiro exemplo daquilo que podemos esperar e encontrar na relação com os outros. é com elas que vamos construir as nossas expetativas e é através delas que criamos confiança no mundo, ou pelo, contrário, a falta dela.
em associação livre relembro a exposição fotográfica do grande Steve McCurry, que está exibição até 23 de janeiro de 2023, na qual nos mostra o resultado de 40 anos de carreira e das suas viagens pelo mundo. é uma verdadeira diversidade cultural com a qual nos confronta. não podemos esquecer como também a cultura nos molda. os valores, os ensinamentos, as práticas e os costumes, tudo isso passa para o bebé, para a criança e para o futuro adulto. tudo isso molda a sua ideia do mundo e dos outros, as expetativas que cria. talvez muitos de nós não consigam imaginar a sua vida sem alguns dos privilégios da nossa realidade ocidental. contudo, quem nunca conheceu tais privilégios, quem não crê ser possivel viver de forma diferente, talvez tenha mais dificuldade em sonhar com algo diferente - o que se aplica também à nossa forma de ser...
voltando à frase inicial da psicóloga polaca Alice Miller, percebemos que na humildade de pouco ou nada conhecer sobre o mundo e sobre nós próprios, absorvemos tudo à nossa volta e acreditamos em tudo o que vivemos como se fosse uma verdade absoluta. é a realidade que conhecemos. é a realidade a que estamos habituados. é aquela que nos é familiar.
a familiaridade torna-se o nosso normal, no verdadeiro sentido da palavra, uma vez que é aquilo que é mais frequente na nossa experiência. sendo o normal, tornar-se tão intuitivo e automático que deixa de estar ao nível de consciência. a inconsciência da infância impõe-se e, por isso, não questionamos, porque não temos razões para questionar. não colocamos em causa, porque é tudo o que sempre vivemos. não pensamos duas vezes, porque não temos outra realidade para comparar - seja porque o ocidente está demasiado longe ou porque a realidade de uma outra dinâmica familiar não pode ser se não fantasiada e idealizada...
assim, é difícil de tomar consciência daquilo que é a continuação da nossa infância porque somente o conseguimos fazer quando nos olhamos de fora. sem isso, tudo se perpetua, atravessando décadas e pessoas, transcendendo tudo e todos, contaminando toda a nossa experiência, até que a novidade nos confronte com as inúmeras outras possibilidades que o mundo traz, com todos os novos contornos que podem tomar e nos abra, finalmente, o horizonte para novas formas de ser e de pensar. podemos viver isso à medida que as nossas redes se vão abrindo ao mundo, mostrando-nos novas pessoas, novas realidades familiares, novas realidades relacionais, mas também o podemos fazer em terapia...
como nota final gostaria apenas de acrescentar que falamos tanto sobre a responsabilidade que temos a nível profissional, por representarmos uma classe com as nossas ações (pelo menos em psicologia este é um alerta constante!) que, pergunto-me, onde está a consciência da responsabilidade dos educadores/pais por representarem todo o mundo? enquanto as primeiras e, durante muito tempo, as únicas pessoas na vida das nossas crias, temos em nós toda a humanidade, carregamos em nós todo o mundo e isso, não é uma brincadeira, é uma grande responsabilidade para com a esperança da humanidade.
literatura:
livro - Por que o amor é importante: como o afeto molda o cérebro do bebé de Susan Gerhard (2017).
livro - As Musas, de Alex Michaelides (editora presença)