a intensidade de estar em relação

17-05-2023

este foi um mês de leituras muito intensas, de tal forma que demorei mais do que o habitual para conseguir escrever sobre elas. estes livros têm algo em comum - falam-nos de relações intensas. como podem as nossas relações primárias moldar-nos? como pode ser possivel encontrar alguém que mexa connosco de uma forma que nos transcende? 


este talvez seja dos livros mais maravilhosos e perturbadores que li nos últimos tempos, tanto que nos esquecemos que estamos a ler uma autobiografia e não ficção. não teria tempo ou espaço suficientes para chamar a atenção para todos os gatilhos e todos os temas que podem ser despertados dentro de cada um de vós, mas deixo um conselho: procurem alguém para discutir depois de lerem - quanto a mim, o clube de leitura do cruamente foi, sem dúvida, um espaço importante para pensar o que ia lendo.

nestas 400 páginas lemos sobre a história da vida da Jennette, mais concretamente, a sua relação com a mãe que não é uma relação qualquer: é uma relação muito pouco saudável e isso é nos transmitido desde a primeira página - o que se torna impactante logo desde o inicio. não podemos esquecer que esta história só é possivel de ser lida por nós, e escrita pela autora, pelo trabalho terapêutico que foi feito, e isso é visível nas inúmeras vezes em que, apesar de estarmos a ler a pequena Jennette, percebemos que aquelas palavras são de uma Jennette adulta que já pensou muito sobre tudo o que viveu e sentiu.

a relação entre as duas pode ser descrita como uma relação fusional. a Jennette tem de, desde que nasceu, ser o prolongamento da mãe. todos e cada um dos seus gestos espontâneos são substituídos pelos desejos e gestos da mãe. esta fusão precoce que existia entre elas obstruiu qualquer movimento de autonomia, inerente ao crescimento. mais, obrigou ainda a que a Jennette tenha desenvolvido uma grande sensibilidade aos estados de humor da sua mãe para que consiga, a todo o instante, adivinha-la e corresponder-lhe.

"Tentei dizer-lhe recentemente que, agora que tenho oito anos, acho que posso tratar disso [limpar o rabo], mas ela olhou para mim como se fosse desatar a chorar." 

"Conheço bem esta expressão, tal como conheço bem todas as expressões da Mãe. Aprendia-as de trás para a frente, para poder comportar-me em concordância (...) Passei a vida a estudá-la, para que possa saber sempre, porque quero sempre fazer o que estiver ao meu alcance, em todas as ocasiões, para manter ou fazer a Mãe feliz."

uma outra consequência desta relação fusional foi o desenvolvimento de perturbações alimentares, e não nos esquecendo de que todos os sintomas são uma forma de comunicação, podemo-nos perguntar: o que comunicam estes? existe um desejo muito intenso e claro da mãe de que a Jennette permaneça eternamente uma criança - poderia colocar muitas hipóteses quando a esta necessidade, não o farei. uma das formas de combater este crescimento, conservando o seu corpo e o aspeto infantil, foi controlando o que come. a anorexia parece ter surgido como uma ferramenta para controlar a angústia do crescimento e da separação, para recuperar algum sentimento de controlo sobre a vida que nunca foi sua. já a bulimia, talvez tenha surgido para fazer frente à angustia interna que sentia, que parecia indizível, impossivel de traduzir por palavras ou de ser vivenciada. vomitando, deixava-lhe um sentimento de esvaziamento de tudo isto.

"Claro que a maioria das coisas está para lá do meu controlo. Perder pessoas que amo, entrar numa série de que tenho vergonha, ver os trabalhos de realização serem-me tirados... mas isto? Isto posso controlar."

"A vergonha que sinto [da série não ser da Netflix] é intolerável. Preciso do meu mecanismo de defesa. Preciso da sensação de esvaziamento que obtenho depois de uma boa purga."

não nos podemos esquecer que, para um criança, os pais são toda a realidade que conhece - o seu exemplo e modelo de relação. ora, este foi um caso infeliz, onde se juntaram vários fatores que proporcionaram uma maior isolamento da Jennette, o que prolongou ainda mais toda esta angústia que observamos. uma bola de neve de sentimentos, emoções impossíveis de serem vividas ou traduzidas por palavras, que se tornaram sintomas e elos de ligação com a mãe da qual não se podia separar, e que não desapareceram com a sua morte, antes, agravaram-se e deixaram-lhe a questão: afinal quem é a Jennette sem a sombra da mãe? 


este é um livro que nos inquieta por dentro ao mesmo tempo que exige uma certa acalmia por fora. fui em busca dessa acalmia e este livro trouxe-ma. é um livro com uma escrita tão suave, poética e lenta, que parece que nos leva a tomar consciência de cada movimento do nosso corpo enquanto o lemos. é muito mais uma experiência do que uma leitura. deixa-nos introspetivos. deixa-nos virados para dentro, tanto como atentos à velocidade da vida cá fora. arrasta-nos com ele para uma outra dimensão, uma que, ironicamente, nos deixa sem palavras, lentos e conscientes.

"a língua falha-nos sempre". esta é uma das frases deste livro que talvez retome agora por sentir que a língua me falha na ânsia de querer escrever sobre ele. por isso, por muito que pudesse continuar aqui a tentar discorrer sobre ele, nada iria fazer jus ao lugar para onde nos transporta e à forma como nos mexe por dentro.


também este foi um livro discutido num clube de leitura, desta vez no projeto Pensando Winnicott. esta é a história da Damaris, uma mulher que queria ser mãe e não conseguia. no entretanto teve uma cachorra que adotou como uma filha. esta é uma narrativa muito crua e até visceral, por vezes dura de ler e impossivel de ficar indiferente.

no inicio deste livro vemos a luta deste casal pela paternidade e o desejo desta mulher para conseguir concretizar o seu sonho. apesar do marido tentar acompanhá-la, vemos uma certa solidão em toda a demanda da infertilidade. vamos tendo alguns vislumbres sobre o passado desta mulher que nos deixa a pensar no lugar que ela tem no mundo e no espaço que existe para a sua individualidade. 

vemos a forma como a chegada desta cadela lhe trouxe algum consolo - como que a possibilidade de, finalmente, poder maternar. vamos vendo a forma como se entrega a esta cadela-bebé, por vezes excessiva. mas, acima de tudo, vemos a dificuldade que tem em lidar com a perda desta "filha" para a autonomia e independência - algo que também vemos retratado no livro Ainda bem que a minha mãe morreu. vemos a zanga a aumentar cada vez mais, o sentimento de ingratidão pelo interesse por novos objetos que vão além da "mãe". mais, vemos a revolta perante a possibilidade da cadela engravidar e ela não e a incapacidade de conseguir viver e tolerar esse ódio que nasce dentro dela. 

"Tinha um só pensamento: a cachorra estava em perigo e ela precisava salvá-la."

"Aquela tinha sido sua cachorra: Damaris a tinha resgatado, carregado em seu sutiã, ensinou-a a comer, a fazer as necessidades nos lugares adequados e a se comportar como devia até que ficou adulta e não precisou mais dela."

este é um livro que me surpreendeu e, apesar de muito pequeno, foi dificil de ler. traz uma realidade da maternidade e da relação mãe-filha muito interessante que, à semelhança do primeiro livro deste mês, parece quase irreal e ficção - mas não o tem de ser. estas são realidades mais próximas de nós do que muitas vezes queremos admitir. não são realidades destinadas à ficção, a Hollywood ou às realidades precárias. esta também é a nossa realidade pelo que os livros deste trazem confrontam-nos com aquilo que queremos não ver.



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marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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