a pressa que rouba autonomia

22-03-2023

ouvimos demasiadas vezes falar sobre o que é normal e o que não é. ouvimos demasiadas vezes falar sobre os parâmetros ideais para o desenvolvimento das nossas crianças. temos números e milestones cravados na nossa mente, assombrando-nos, levando-nos a medi-las a cada momento, para nos certificarmos de que está tudo a correr bem (de que estamos a fazer tudo bem, talvez). assim fica em nós a "segurança" de que "de acordo com a tabela x" está tudo certo e, na possibilidade de cruzarmos olhar com o olhar reprovador de outro Pai, respiramos fundo e arremessamos os números como prova e os cientistas como a autoridade que nos confere credibilidade - como se o que vemos nas nossas crianças não fosse suficiente e a nossa intuição ajustada. isto corrói-nos e deixa-nos incapazes de pensar com o coração o que nos obrigam a pensar com o cérebro. mas se é para usar o cérebro, então usemos a parte mais evoluída dele: pensemos sobre isto com o nosso córtex pré-frontal e não com a nossa amigdala (cerebral).


todos estes números, tabelas e fases deixam-nos com o coração nas mãos. deixam-nos tão ansiosos com aquilo que queremos que sejam capazes de fazer, que acabamos de olhos presos no futuro e deixamos que o presente se evapore nas nossas mãos. ficamos com tanta pressa que chegue o dia em que corram atrás de nós e nos chamem de "mamã", que nem reparamos como já procuram o nosso olhar quando acordam ou como já agarram o nosso dedo enquanto mamam. "a pressa é inimiga da perfeição", diz-nos um ditado popular português. não que, sem pressa, consigamos atingir a perfeição, mas com pressa iremos inevitavelmente perder coisas no caminho. neste caso, diria que perdemos o respeito pelo seu crescimento .

a nossa pressa faz-nos então querer que as nossas crianças cresçam rápido. faz-nos querer mais delas, exigir mais delas, esperar mais delas, atropelando os seus ritmos. nesta demanda desenfreada de estimulação, parece que acabamos a empurrar as nossas crianças para o abismo, confundindo aquilo que são as suas necessidades com aquilo que somente as atrapalha. no meio de toda esta confusão, as nossas crianças vão perdendo de vista os seus gestos espontâneos procurando corresponder-nos. 

confundimos estimulação com forçar.  

confundimos crescimento com autonomia. 

confundimos autonomia com desamparo

confundimos introversão com boa educação. 

confundimos choro com birra.

confundimos zanga com mau feitio. 

confundimos agressividade com violência. 

parece que nos esquecemos, tal como Emily Pikler nos diz, que não é necessário forçar capacidades antes da hora. cada criança tem o seu próprio ritmo que deve ser respeitado e tudo aquilo que precisa para que consiga fazer o seu próprio processo de crescimento é de presença e segurança - a nossa presença que lhes confere segurança. isto implica então que estejamos sem pressas a usufruir do seu crescimento, focados no aqui e agora, que as permitamos a viver a dependência de que precisam, e que nós não a vivamos assustados que estejamos a "estragar" as nossas crianças.

quanto maior a dependência na infância, maior a autonomia nas fases seguintes. Márcia Tosin

esquecemo-nos que aquilo que  promove o impulso saudável para crescer e para explorar o mundo é uma base forte de segurança interna e é esse o nosso papel: dar-lhes toda a segurança que precisam - responder aos seus apelos (porque se procuram os pais é porque o seu corpo precisa deles!), responder às suas necessidades (porque se pedem é porque lhes falta algo!), ler e traduzir as suas emoções (porque são ainda demasiado imaturas para o conseguirem fazer sozinhas!), procurar com curiosidade entender os seus comportamentos (porque nada do que fazem é por acaso!) e seguir a sua lide (porque elas sabem quando estão preparadas para dar o próximo passo!).

o que quero dizer afinal? preocuparmo-nos com o crescimento e o bem-estar das nossas crianças faz não só parte da parentalidade, como é desejável que assim o seja. a questão que hoje trago para pensarmos não é a nossa preocupação, mas sim aquilo que fazemos com ela. com que parte de nós agimos perante a nossa preocupação? talvez, a maioria das vezes, o façamos com a nossa amigdala - com a parte do cérebro que sinaliza uma ameaça. e qual é a ameaça aqui? 1) os outros! aquilo que os outros poderão pensar e dizer sobre nós enquanto pais e, essencialmente, 2) nós! e a imagem que temos e queremos ter de nós próprios enquanto pais e que queremos proteger. 

cada vez que nos deixamos consumir pela pressa que temos que as nossas crianças cresçam e mostrem (ao mundo!) as suas capacidades, talvez estejamos mais próximos de estar a agir para nos protegermos, do que de acordo com aquilo que são as reais necessidades das nossas crianças, dessintonizando-nos delas. não tenhamos pressa que cresçam, porque em breve deixar-nos-á saudades. não as empurremos para uma autonomia precoce e deixemos que sejam pequeninas o tempo que quiserem, aproveitemos cada minuto em dependem de nós para lhes dar tudo o que podemos de tudo o que precisam - sendo que precisam de pouco mais do que nós por inteiro!

literatura técnica:

livro - Criação Neurocompatível: uma visão revolucionária sobre o desenvolvimento infantil, de Márcia Tosin



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marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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