as crianças não gostam de ser hipercompetentes

13-02-2023

tantas são as vezes em que sinto a alegria dos pais a falar da autonomia das suas crianças. tantas são as vezes em que sinto o orgulho dos pais quando dizem que as suas crianças têm competências acima do esperado (esperado para quem? podíamos questionar...). mas, são raras as vezes que pensamos sobre o que isso realmente significa para elas... que pergunta parva, não é? porque haveríamos de questionar quando as coisas "correm bem"? percebo, mas confie em mim e tentemos pensar: porque são tão competentes, afinal, as nossas crianças?


há uns anos, observava uma criança de 5 anos na escola durante a hora de almoço. enquanto a maioria das crianças gritava pela educadora porque ainda não tinha a colher para a sopa, esta criança não. esta criança, silenciosamente, levantou-se da mesa e foi buscar a sua própria colher, sem qualquer manifestação. faz-nos pensar, não? a rapidez com que resolveu o assunto faz-nos pensar como deve ser frequente ver-se numa situação destas, numa situação em que, havendo algo em falta, tem de ser o próprio a solucionar-se. porque agirá assim? só podemos imaginar...

talvez devêssemos começar pelo início e por uma frase que já vai sendo recorrente nos meus artigos: o bebé humano é um projeto inacabado, um eterno prematuro. isto implica que, grande parte do nosso desenvolvimento - incluindo as nossas competências e traços de personalidade -, é moldado através das experiências que vivemos.

tal como qualquer músculo, as nossas competências são fortalecidas com o uso que fazemos delas. por isso é que se diz que uma criança pequena tem maior disponibilidade  para aprender línguas ou uma maior facilidade para aprender a tocar um instrumento. todas as competências vão-se desenvolvendo e aprimorando porque são exercitadas, porque têm um papel recorrente e importante no dia-a-dia da criança. o mesmo acontece com competências que, mais tarde, referenciamos como traços ou caraterísticas da personalidade. aquilo que somos reflete então as necessidades que vivemos e para as quais tivemos de nos ajustar, desenvolvendo determinadas caraterísticas em detrimento de outras para nos adaptarmos ao nosso meio.

regressando à cena que presenciei naquele refeitório, relembro como as educadoras, inocentemente, ficavam radiantes com a autonomia desta criança, com o facto de não "dar trabalho nenhum", não gritar no meio do refeitório, não estar sempre a chamá-las para ajudar com os trabalhos propostos: por quase passar despercebida. mas, fará isto sentido? não será suposto uma criança ser vista? não será suposto uma criança dar trabalho?

lembra-me uma frase que li num dos livros com mais hype nos últimos tempos: "talvez devesses falar com alguém". este é um livro meio ficcionado, escrito por uma terapeuta que nos fala da sua experiência enquanto profissional e da sua experiência no seu próprio processo terapêutico. no meio da sua história, conta-nos o processo de alguns dos seus clientes e, relativamente a uma delas, diz o seguinte:

a Charlotte foi obrigada a agir como uma adulta prematuramente, como um condutor sem idade para conduzir sem carta através da vida. (Lori Gottlieb

esta foi uma frase que me marcou e que transmite exatamente aquilo que tenho pensado. uma criança é um ser em desenvolvimento e que está totalmente dependente dos adultos - quer dizer, é suposto que uma criança dê trabalho. como é que somos capazes de imaginar que uma criança sente-se bem sendo hipercompetente? como é que somos capazes de imaginar que é ótimo que uma criança seja tão autónoma? como é que conseguimos imaginar que uma criança goste de não dar trabalho? como?

podemos imaginar como esta criança de 5 anos parecia sentir que não valia a pena chamar alguém que, em última instância, nem valeria a pena sequer chorar, porque talvez não fosse atendida. esta sua atitude fala-nos do seu desamparo aprendido, fala-nos da sua descrença no outro, um desacreditar no adulto, na capacidade de ser ajudado. imaginemos a agonia que não deve ser viver o estado de dependência que implica ser criança e perceber que não se pode confiar a nossa vida nas pessoas em que dependemos? não querer testar se, não formos preparar o nosso pequeno almoço, alguém o fará para nós. se não nos apetecer ir para a escola, alguém nos obrigará. se não soubermos fazer os TPC's, alguém os fará connosco. se estivermos muito tristes, alguém perguntará o que se passa connosco. 

quando olhamos de perto, vemos como esta criança estava fechada dentro de si, no silêncio da sua solidão. percebemos ainda que estávamos todos a ser coniventes com o que quer que seja que a obrigou a ser prematuramente responsável por si própria, quando aplaudíamos e promovíamos esta sua "independência", tantas vezes confundida com "desenrasque" e "autonomia". tudo aquilo que esta criança precisava era de ter a oportunidade de abandonar esta hipercompetência e poder simplesmente ser criança e deixar-se ser cuidada. 

falamos aqui de uma criança com apenas 5 anos de vida, mas estas experiências recorrentes vão-se cristalizando. porque será que um adulto tende a ser tão reservado? a guardar tudo para si próprio? talvez porque, a determinada altura, tenha aprendido que não havendo ninguém interessado em o ouvir, mas valia calar. talvez porque receasse a reação do outro lado cada vez que partilhasse os seus sentires. porque será que um adulto tende a falar tão alto, quase como se estivesse a gritar? talvez porque, a determinada altura, tenha sentido que apenas levantando a sua voz seria ouvido. porque será que um adulto tende a ser tão pacifico, mesmo quando não é esperado? talvez porque, a determinada altura, sentiu que não sabendo os limites da sua zanga, era mais seguro não se zangar de todo. 

as crianças não gostam de ser hipercompetentes. (Lor Gottlieb)

por isso, quando ficamos tão contentes por as nossas crianças serem TÃO alguma coisa, perguntemo-nos: porque são assim? que função cumpre esta caraterística? porque precisam elas de ser tão boas nisto? o que será que imaginam que acontece se não forem? as crianças não são pequenos adultos. não poderemos esperar isso delas. as crianças não têm, nem devem, saber como se comportar. não devem estar demasiado conscientes dos seus deveres ao ponto de se perderem de si próprias. as crianças devem apenas ser crianças e, para isso, não podem ser pequenos adultos. 

nota final: por muito que possamos ter linhas condutoras semelhantes no pensar das problemáticas psicológicas, cada criança deve ser pensada na sua individualidade e dentro do seu contexto sociofamiliar. todos os comportamentos têm uma função, constituindo-se apenas a ponta do iceberg que deve ser pensada caso a caso. se ficou com dúvidas ou incertezas quanto à temática, consulte um profissional de saúde mental.

bibliografia:

livro - Talvez devesses falar com alguém, Lori Gottlieb

artigo . Cientistas descobrem por que crianças têm facilidade de aprender mais de uma língua, CNN 

marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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