crianças irrequietas
não é possivel pensar a temática da
irrequietude sem referir a clássica (ainda não esquecida) dicotomia corpo-mente.
diria que, o primeiro aspeto a sublinhar, é o de que esta dicotomia não existe! o corpo
e a mente estão permanentemente interligados desde os primórdios do nosso desenvolvimento
fetal. ambos se desenvolvem a par e passo um com o outro, de forma interligada,
e ambos compõem as nossas experiências (caraterizadas por um lado somático e psíquico).
o corpo é a primeira morada do ser humano no mundo. Donald Winnicott
começando pelo inicio, o bebé vive uma série de experiências dentro de si através do seu corpo. a própria comunicação entre as figuras de vinculação e o bebé é, também ela, feita corporalmente - isto é, o bebé vive e comunica as suas experiências através do corpo (ex. chorando, gritando, agitando as pernas, esbracejando, fazendo expressões de desagrado) e terá a sua resposta a essas experiências através de sensações e de movimentos no seu corpo e no de um outro, que o apaziguará (ex. colo, palmadas ritmadas nas costas, festinhas, balancear, troca de fralda, amamentação).
nos primeiros tempos de vida, onde tudo é então vivido no corpo, o bebé vai alternando entre estados de excitação e estados tranquilos, isto é, momentos de inspiração e expiração, em que está acordado e em que dorme, em que sente fome e está saciado. estes são estados internos que continuamos a viver na nossa vida e cuja transição entre eles começa por mediada pela responsividade das figuras de vinculação às suas manifestações.
há uma ligação entre movimento e afetos. Emílio Salgueiro
quando temos uma boa sintonia entre as figuras de vinculação e o seu bebé, os movimentos corporais que decorrerão da interação entre ambos serão propícios a afetos de satisfação, uma vez que as suas angústias serão reconhecidas e apaziguadas. já os momentos de desentendimento, conduzirão a afetos de desconforto e irrequietude. se os desencontros e as dessintonias forem recorrentes, no espaço da relação com as figuras de vinculação, limitam a transformação e a organização de pensamento, corpo, espaço, e tempo. a probabilidade daquele bebé crescer e ficar perdido no que sente é maior.
tal como referi num artigo anterior, o bebé não sabe o que se passa com ele, além da ansiedade inimaginável que o invade e consome. somos nós, adultos, que damos sentido e nome ao que vive, o que vai permitindo criar dentro de si um "dicionário dos seus sentires", que liga corpo e psique. é a partir destas vivências, destas sensações vividas a partir do contacto com o seu corpo e com o exterior, que o bebé vai adquirindo uma noção de si próprio e do mundo.
mais tarde, esta vivência corpórea tende a evoluir. o psicanalsita João dos Santos dizia que "a criança começa por pensar com o corpo, porque pensa movendo-se, jogando, brincando com as pessoas, mexendo nas pessoas e nos objetos". contudo, se olharmos o nosso dia-a-dia, o quanto permitimos esta exploração e este pensamento? creio que nem temos total consciência do potencial deste movimento que, tantas vezes, procuramos inibir. é a partir deste movimento que a criança começa a pensar-se, a fazer das suas dúvidas, das suas inquietações, das suas alegrias e tristezas algo criativo. sem espaço e tempo para o movimento livre, o que nos resta?
ora, quando falamos de uma criança irrequieta, referimo-nos a uma criança cuja movimentação é sentida como excessiva na sua intensidade ou inapropriada à situação. contudo, aquilo que não percebemos é que só se movimentando é que a criança consegue o equilíbrio mental para ser funcional. e porquê?
as crianças irrequietas tendem a ter dificuldades em elaborar o que vai dentro de si e a viver num estado de desconfiança básica perante a possibilidade serem contidas. desta forma, os seus estados tranquilos tornam-se demasiado intensos e perturbadores, uma vez que se constituem momentos de recolhimento nos quais são invadidas por uma série de angústias indizíveis que vivem sós.
estas crianças tendem a transformar estas angústias em algo com o qual conseguem lidar - o movimento, desviando para a descarga motora, para o movimento contínuo, as suas angústias. este movimento é, ao mesmo tempo, uma forma de se manterem afastadas destas angústias que as consomem, mas torna-se também uma forma de relação determinada pelo seu sentimento de desconfiança básica e que se traduz em movimentos de afastamento e aproximação do outro.
neste sentido, podemos pensar a irrequietude como uma defesa perante a angústia indizível e incompreensível que a criança vive. a criança não está quieta porque quer. a criança não está agitada porque quer. a criança não vive com "uma energia inesgotável" porque quer. lembremo-nos do terror sem nome que vive o bebé e a criança perdidos dentro de si próprios, engolidos pelas suas próprias angústias. lembro-nos da falta de tempo e espaço para que a criança possa pensar-se através do corpo. a criança, NÃO tendo mais recursos, recorre à forma mais precoce através da qual viveu as suas experiências internas que é o corpo e o movimento. atenção: o movimento é um recurso normativo, mas não se pode tornar o único recurso, correndo o risco de se tornar numa armadilha.
instabilidade motora poderia ser a tradução deste sentimento de estar perdida, mas também, a esperança de poder encontrar e reconhecer o que perdera, ou de ser encontrada e reconhecida como o que fora perdido. Emílio Salgueiro
de que forma podemos então, agora, ajudar estas crianças?
segundo o psicanalista Emílio Salgueiro, a criança irrequieta precisa de ser ajudada a transformar parte da sua movimentação motora, numa movimentação do pensamento - "passar de uma motricidade irrequieta para um pensamento irrequieto", isto é, tornar consciente aquilo de que tanto tenta fugir, porque é a partir do pensamento que conseguimos aceder e transformar as nossas angústias internas.
só quando aprender a pensar "melhor" a criança poderá dar por terminada a sua agitação motora. assim, talvez o trabalho com estas crianças passe por voltar a (re)construir não só a confiança no outro (em nós adultos!), e na sua(nossa) capacidade de reconhecimento e contenção das suas experiências internas, bem como (re)escrever o seu "dicionário dos seus sentires".
nota final: por muito que possamos ter linhas condutoras semelhantes no pensar das problemáticas psicológicas, cada criança deve ser pensada na sua individualidade e dentro do seu contexto sociofamiliar. todos os comportamentos têm uma função, constituindo-se apenas a ponta do iceberg que deve ser pensada caso a caso. se ficou com dúvidas ou incertezas quanto à temática, consulte um profissional de saúde mental.
literatura técnica:
livro - A Teoria do Amadurecimento de Winnicott, de Elsa Dias de Oliveira
artigo - O Desenvolvimento motor, o afeto e o pensamento na criança irrequieta de Emílio Salgueiro
artigo - A instabilidade do João, de Emílio Salgueiro
livro - Eu agora quero ir-me embora, de João dos Santos & João Sousa Monteiro