a escravatura dos livros infantis
é um dado adquirido o meu gosto por literatura. é um dado adquirido o meu gosto pela literatura infantil. o poder dos livros é algo incrível e que não pode ser descurado e, por isso, recomendo muitos livros e nas mais variadas situações. contudo, fico na dúvida se consigo transmitir realmente a minha intenção com essas recomendações...
esta reflexão vem a propósito de uma partilha de uma mãe que me ficou na cabeça a martelar durante dias e dias e que, por isso, hoje aqui venho desmontar. o comentário dizia o seguinte:
existem muito livros infantis que as ajudam a lidar com os sentimentos de raiva (das crianças, entenda-se).
ao ler esta frase num dos comentários, um arrepio na espinha agitou-me. nesse momento a minha cabeça invadiu-se de pontos de interrogação que questionavam, na prática, o que queria isto dizer. à medida que ia imaginando as respostas o medo ia tomando conta de mim.
os livros infantis são (uma grande maioria!) mágicos - não é nada disso que estou a colocar em causa. as histórias mostram-se um meio de contenção e acolhimento para a criança que os escuta. as histórias abrem a porta para o ensaio e a encenação das angústias das crianças que são externalizadas através das personagens e dos seus comportamentos e, por isso, passiveis de ser compreendidas. assim, consciente ou inconscientemente, elaboram o seu simbolismo de modo a dar respostas às suas problemáticas interiores sabendo que, estas têm uma resolução.
o meu medo é que, numa sociedade tão acelerada como a nossa, percamos de vista que, o mais importante nos momentos de leitura com as nossas crianças é a possibilidade dela ser feita em conjunto. receio que quando damos destaque à literatura infantil, a sintamos (mesmo que por breves momentos) como uma prazerosa substituta à nossa presença como se, dando-lhes os livros para as mãos, conseguissem sozinhas fazer os pozinhos de perlimpimpim e acalmar o que vai dentro delas.
a verdade é que, mesmo a solo, as histórias conseguem tocar os corações de quem as lê ou ouve, mas sabemos que aquilo que faz realmente a diferença é a forma como as lemos. ler com as pessoas mais importantes da nossa vida a guiar-nos pelas nossas maiores angústias projetadas nas personagens, eleva a parada. a voz de quem conta as histórias propicia os toques mágicos, lúdicos e terapêuticos nas histórias. é a voz do outro que embala a criança e a leva a imaginar fora do livro e a divagar sobre as milhentas possibilidades da (sua) história.
tal como podemos ler livros a solo também podemos regular-nos sozinhos. também as nossas crianças podem (tentar!) regular-se sozinhas, especialmente se é o que sentem que lhes é pedido. contudo, não significa que seja a melhor opção para si e para o seu desenvolvimento. os livros não ajudam as nossas crianças a regular-se. para isso, precisam de nós, precisam dos adultos para as co-regularem, para estarem com elas enquanto vivem o seu cabo das dormentas e temem se o vão conseguir contornar ou não. somos nós que temos de lá estar e dar nome ao gigante Adamastor que as parece devorar de dentro para fora e dar-lhe corpo e significado.
ouvir uma história é ficar com imagens na mente, que darão validade a importantes sentimentos, promoverão perspicácia, alimentarão esperanças e reduzirão angústias. ouvir uma história é alimentar a ideia de que é possível um caminho da descoberta do mundo e do próprio acompanhado. é falar e viver a co-regulação na primeira pessoa e isso sim é que torna as histórias um seio de amparo.
este meu receio foi tão grande, que não consegui deixar passar este comentário sem fazer esta nota de ressalva para que não tenhamos os nossos livros infantis num processo de escravatura, que os faz carregar mais responsabilidade do que aquela que eles conseguem suportar. não são os livros que ajudam as nossas crianças a lidar com o que sentem, somos nós - e essa responsabilidade não podemos dar a mais nada nem ninguém!