o protelar do impensável
uma reflexão tendo por base a peça de teatro Casa Portuguesa escrita por Pedro Penim e que está em exibição no Teatro Nacional D. Maria II até dia 16 de outubro.
eu, como todos os portugueses, estamos acostumados a ouvir o fado Casa Portuguesa - tal como ficou provado em plena sala do D. Maria II, onde mostrámos como o sabíamos de cor e salteado. é uma música que faz parte da "identidade portuguesa" de tal forma que, provavelmente, nunca nenhum de nós ousou questioná-la (pelo menos, eu não o tinha feito!). este sentido critico constituiu a base do primeiro ato desta peça e deixou-me a pensar: será que tomamos realmente atenção àquilo que vai passando de geração em geração?
(...)
este é um fado escrito em 1953 o que, por si só, já fala muito do tom que lá encontramos. a peça relembra-nos o contexto histórico e social da sua criação e esse parece-me o ponto mais importante. Portugal, nesta altura, encontra-se em plena ditadura, com uma vida pobre resignada e sem qualquer perspetiva de uma vida melhor - impedidos de sonhar mais além. o foco é assim a sobrevivência, a família e a subsistência. a mentalidade de uma vida de coração apertado sem espaço para crescer está muito presente na letra desta música e, particularmente, nos excertos que partilho acima. mas, será que esta letra continua a fazer sentido nos dias de hoje?
é importante frisar que esta letra nada tem de errado. creio que é um fado cujas palavras conseguiram descrever de uma forma incrivelmente sensível e pensada aquilo que era a experiência portuguesa da altura. uma letra que, durante muito tempo, continuou a espelhar a vivência e a mentalidade dos portugueses e que, por isso, mais de 50 anos depois continuamos a ouvi-la. mas será que continua a representar aquilo que é a "identidade portuguesa"? será que os jovens que a continuam a cantar se revêm realmente nestas palavras? será que o nosso contexto histórico-social não é agora outro e que não faz mais sentido?
nada surge, ou pode ser pensado sequer, sem contextualização. o contexto é aquilo que sustenta e que permite o pensamento e a criação. criar e pensar nas criações no vazio dá-nos liberdade para fantasiar, para preencher as lacunas da informação que nos falta e, simplesmente, nos desligarmos da origem e das suas raízes. qualquer coisa que cada um de nós diga, faça ou crie, seja na forma de letra de uma música, de um guião de uma peça, de um enredo de um livro, de uma start-up ou simplesmente numa conversa entre amigos, existe e terá as suas caraterísticas tendo em conta o momento exato em que é elaborado - e isso implica, o seu contexto histórico, social e pessoal.
"a necessidade faz o engenho" é o proverbio português que traduz aquilo que estou a tentar transmitir. é o contexto, que se traduz pelas necessidades de cada um de nós, que é o motor do pensamento e da criatividade e que faz fazer nascer o novo. este fenómeno passa-se em tudo na vida, das inovações tecnológicas, à música e às práticas da parentalidade - tudo surge com base no contexto que está a ser vivido e das necessidades que precisam de ser satisfeitas. e, como em tudo na vida, as pessoas mudam, a sociedade evolui e as suas necessidades também. será que faz sentido conservarmos no nosso dia-a-dia o que já não nos satisfaz?
se sairmos do mundo da música e entrarmos no mundo da parentalidade encontramos o mesmo fenómeno. cruzei-me com a partilha no Instagram da osteopata e terapeuta craniosacral Ágata Leonardo que explica a origem e popularização da prática parental denominada tummy-time. nesta publicação fala-nos da necessidade que levou à origem da disseminação pelos profissionais desta prática - uma necessidade que, atualmente com o contexto histórico e social em que nos encontramos, talvez já não faça sentido ser reforçada.
e se há práticas que já não valem a pena ser reforçadas, existem outras que simplesmente já têm o seu prazo de validade expirado. falo da palmada corretiva, do cantinho para pensar/do castigo, dos cumprimentos forçados, do chorar até adormecer, do colo que mima ou dos homens que não choram. sabemos que há coisas que resistem ao passar do tempo e às mudanças da sociedade. mas será que esses costumes ou conjeturas permanecem no tempo porque continuam a fazer sentido ou porque não são questionadas?