o que fica aquém

03-04-2023

este foi um mês de leituras carregado de simbolismos e metáforas. estes são três livros muito diferentes entre si, mas que nos falam sobre relações que ficaram aquém daquilo que as personagens precisavam. independentemente de todos os desejos falhados, de todas as idealizações despedaçadas pela realidade, vemos personagens cuja resiliência não as deixou vergarem-se a toda esta dor e sucumbir-se nela. vemos personagens que lutaram, que desenvolveram as caraterísticas que precisavam para sobreviver no meio onde estavam. estas personagens fazem-me reforçar a minha crença no ser humano e no seu potencial de crescimento!



Carta à minha filha traz-nos um conjunto de cartas que Maya Angelou escreveu para a filha que nunca teve. mãe de um menino, Maya nunca teve a oportunidade de partilhar as suas vivências enquanto mulher afro-americana. não nos traz propriamente uma história e, por isso, talvez seja mais fácil nos perdermos na sua leitura ou não ficarmos tão agarrados às suas páginas. 

neste livro, podemos encontrar muitas reflexões e histórias da sua vida.  a forma como foi crescendo enquanto mulher, os receios e preconceitos que sofreu, os lutos que fez, as suas dúvidas e incertezas sobre a vida, sobre a religião, sobre a sua profissão. é um livro muito interessante de ir lendo e capturando a essência desta grande mulher que nos enche com a sua presença nas palavras que escreve. 

"o coração humano é tão robusto, tão forte que, quando encorajado, mantém o seu ritmo como um insistência audível e inabalável. Um das coisas que encoraja o coração humano é a música. Ao longo dos anos, sempre criámos canções que nos ajudaram a crescer e a viver". Nós, os Americanos, criámos música para encher de força os corações e servir de inspiração às pessoas de todo o mudo".


este é um livro que sei que, apesar da sua capa atrativa, espontaneamente não o escolheria. contudo, fui surpreendida e, por isso, tenho de agradecer à Penguim pela oferta. este livro conta-nos as peripécias da personagem principal, Maren, ao levar uma vida com uma caraterística particular que a assombra desde que nasceu: o canibalismo.

algo que tenho aprendido com os livros de fantasia é que podemos ir mais além do que o pensamento mágico que eles trazem. neste caso, a metáfora do canibalismo é o que, na minha opinião, acrescenta alguma profundidade ao livro que, aparentemente, é muito superficial. aliás, é por encarar como uma metáfora, que se tolera o seu empobrecimento, em especial, a ausência de pormenores descritivos dos momentos canibais. mas qual é a metáfora afinal?

sinto o canibalismo como a resposta exagerada de luta-fuga que todos e cada um de nós tem, mais concretamente, a resposta de agressividade - o lado mais reptiliano do nosso cérebro, que emerge cada vez que nos sentimos ameaçados. é isso que aqui vemos retratado: o potencial ameaçador das relações humanas.

a história da Maren faz-me lembrar o livro da Rita da Nova (sobre o qual escrevi o mês passado), na qual temos uma relação atribulada entre mãe e filha e uma vontade sobrehumana de encontrar e conhecer o pai. ao longo do livro, Maren vai falando de como a relação com a sua mãe está marcada pela sua agressividade e distanciamento emocional "Mas a minha mãe nunca me dizia coisas só para me sentir melhor. Nunca me tratava por minha querida, nem dizia nada que não fosse verdade". 

dentro da Maren vemos uma grande carência que ganha forma com o canibalismo. a Maren come pessoas cada vez que se tentam aproximar dela. por um lado, há uma vontade muito grande de criar e manter uma ligação com os outros e preencher o vazio que sente; e, por outro, esta sua voracidade é tão grande que a faz perder-se no outro quando o encontra e devorá-lo "é como se houvesse um enorme buraco dentro de mim e, quando toma a forma dele, é ele a única maneira de o preencher". 

já Lee, a outra personagem da história, rende-se ao canibalismo sempre que sente uma grande injustiça. a sua zanga e agressividade tornam-se violência quando revive a sua história e ferida narcísica de uma mãe que o despreza e ignora. tornass quase um justiceiro que tenta equilibrar a balança e proteger os desfavorecidos - tal como gostaria de ter sido protegido.

(spoiler!) Maren encontra o seu pai e é através da sua história que vemos a transgeracionalidade. vemos como o abandono é o fantasma desta família que alimenta a sua zanga e revolta. vemos como o pai de Maren surgiu para preencher um vazio dentro de um família que tinha acabado de perder um filho. a revolta e a zanga deste homem foi crescendo sempre que se confrontava com a falta de lugar para si próprio naquela família, sempre que se via assombrado pelo filho perdido que se forçava a ser. 

apesar de ser uma história interessante e de deixar muito espaço para a fantasia, pela ausência de grandes descrições, sinto que gostava de ter lido mais sobre o interior das personagens, de ter mais pensamentos e sentimentos. fico, no entanto, curiosa para poder assistir novamente à adaptação deste livro ao cinema e analisar as diferenças.



este é um livro que me deixou de coração nas mãos. foi uma leitura que demorou muito, mas realmente muito, tempo a fluir. parecia quase sem nexo, uma vida familiar tão desconexa e aleatória que me perturbava a leitura. contudo, nas ultimas 100 páginas, estava verdadeiramente imersa na tristeza e na solidão que as personagens deste livro carregam dentro delas. as lágrimas estiveram no canto dos meus olhos durante todo este final, não porque fosse um plot twist intenso, mas porque ficava cada vez mais óbvia esta dimensão de profundo desamparo.

é muito curioso o titulo e a capacidade que a Rose, a personagem principal, nos traz. Rose consegue, pelo sabor dos alimentos, perceber não só as suas caraterísticas, o local de produção, mas também as emoções de quem os confeccionou. claro que não resisto a fazer uma análise mais psicológica e, uma vez mais, metafórica destas capacidades. 

esta capacidade de Rose talvez seja uma excelente metáfora para os herdeiros de pais deprimidos. sem querer generalizar, existe uma certa tendência nestas crianças em procurar ler o mais corretamente possivel os estados emocionais dos pais de forma a que consigam adaptar-se e moldar-se a eles. tal como Rose, estas crianças acabam então por tornar-se, por necessidade, hipercompetentes a perceber aquilo que os outros estão a sentir, sendo rotuladas como muito empáticas e amigas quando, na verdade, não conseguem sair desse lugar "moldável" na relação com o outro. 

" You would come hug me just exactly when I needed a hug. Like magic. Mom said. (...) It wasn't magic, I said. You always looked like you needed a hug" 

é interessante ainda que esta metáfora surja pela comida - um dos primeiros veículos de conexão. alimentar é dar afeto. é mimar. é cuidar. e de que forma terá sido alimentada esta criança? pela sua dificuldade em comer a comida da mãe, e preferência por snacks de máquinas, podemos imaginar a carga emocional que sente nos seus pratos, na relação com esta figura primária tão importante para o seu desenvolvimento.

Rose é somente a filha mais nova deste casal. temos um filho mais velho que vamos conhecendo melhor ao longo do tempo e que nos transmite ainda mais a depressão que esta mãe viveu. numa vida que lhe parecia totalmente desligada de si própria, procurava nos filhos preencher o vazio que sentia, mais concretamente, no filho mais velho, aquele que parecia ser quem dava mais alento à sua vida. tendo em conta esta necessidade interna da presença deste filho, a relação meio que fusional que existia entre eles, conseguimos perceber como o marcou e, por isso, compreender melhor o seu destino. 

"I'd realized, and by taking the splinters out of her hand, it felt to me now like he'd been almost pulling himself out of her. (...) he was also removing all traces of any tiny leftover parts, and suddenly a ritual which I'd always found "

sem querendo dar (mais!) spoilers, é muito interessante pensar ainda como os nossos pontos cegos, enquanto pais, tantas vezes no bloqueiam de conectar com os nossos filhos. há algo neste pai, que mais à frente na história percebemos, que o faz estar tão desligado dos outros e, mais concretamente, dos seus filhos. por vezes, com a vontade de afastarmos da mente aquilo que nos perturba, nem conseguimos ver como também os nossos filhos estão a sofrer conosco.

resumidamente, este é um livro duro, inteligente na sua escrita, ainda que meio que confuso e aleatório, sendo que só conseguimos ligar as várias pontas soltas relativamente perto do fim. é um livro com uma carga simbólica tal que recomendo a todos ler - especialmente a psicólogos. o livro ainda não está traduzido para português e a versão que li foi a ebook (daí não constar na fotografia).



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marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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