o tempo também se conta pelos desgostos

19-12-2020

hoje trago um dos "discos pedidos": o luto. estamos em dezembro, no mês da família, dos afetos, dos laços. contudo, este mês do amor também nos pode deixar um sabor mais amargo quando nos confrontamos com o lugar vazio na mesa da consoada, com o impulso de dar uma prenda a alguém que não está mais cá. a ambivalência desta época natalícia é uma realidade e de nada vale continuarmos a negá-la, por isso, vamos pensar sobre ela.

no nosso dia-a-dia, somos constantemente expostos à noção de separação e de finitude (que surge muitas vezes acompanhada de frustração, especialmente nas crianças). quando se dá a perceção da separação - de um eu que fica longe de um tu que quero perto mim - começa a surgir o medo da perda. a noção de perda vem mais cedo do que a noção de morte e é um sentimento tão primitivo, e em muitos de nós não elaborado, que fica a pairar como uma nuvem até à hora da morte. o medo da perda é um sentimento muito primitivo, mas do medo à dor da perda, ainda vai uma distância. se fosse possível mesurar os sentimentos, seria possível dizer aqueles que mais pesam no nosso coração e, se assim fosse, se fosse possível colocá-los numa balança, diria que o mais pesado seria a dor, a dor da perda.

porque o "tempo também se conta pelos desgostos" (valter hugo mãe), há algo bonito e poético na dor, pela sua unicidade, talvez. por muito que pudéssemos todos estar em luto, cada um iria experienciá-lo de forma diferente e própria. não há dois lutos iguais, porque não há duas pessoas iguais - a dor depende de quem sente e de quem se perde e, por isso, é impossível viver um igual. como tal, não há receitas para viver ou ultrapassar a dor de se perder (algo ou alguém).

há (algumas) perdas que se vestem de uma agonia impossível de disfarçar, quando nos permitimos a senti-la, sente-se em todas e em cada parte do nosso corpo; moí-nos por dentro e suga-nos. como tal, o nosso olhar vai-se tornar mais fugidio e vazio, as lágrimas poderão escorrer-nos insolentemente pelos olhos e a tensão poderá apoderar-se de todos os nossos músculos. as crianças são atentas e intuitivas e, rapidamente, se apercebem quando um adulto lhes foge com o olhar e se emociona na hora de as abraçar. se não faz sentido esconder uma morte de uma criança, muito menos fingir que não se sofre. ver alguém importante para nós a sofrer pode doer, é certo, mas é importante não negar algo que a criança já pressentiu e, por isso, expressar, adequadamente os nossos sentimentos e emoções, sem os mascarar, é organizador e transmite segurança.

é importante ter algum cuidado na hora de dar a notícia: ninguém gosta de ser apanhado desprevenido num lugar onde não se sente confortável e seguro, certo? neste sentido, destaco três aspetos que me parecem cruciais: 1) que a notícia possa ser dada num local tranquilo e familiar, no qual a criança (e o adulto!) se sinta confortável para expressar qualquer que seja a emoção que vá sentir; 2) traduzir para a criança aquilo que nós, adultos, estamos a sentir e aquilo que ela, possivelmente, poderá vir a sentir também (tristeza, revolta, zanga, saudade); e 3) fazê-lo com tempo, para que possa simplesmente estar com a criança um momento (por vezes não são necessárias palavras).

se, por norma, as palavras certas para os assuntos complicados já são difíceis de encontrar, em momentos em que a dor se encontra atravessada na nossa garganta, parece que nenhuma consegue sequer ganhar corpo. cada criança é uma criança, o seu grau de desenvolvimento e as noções reais que possui, bem como as suas capacidades para lidar com a realidade são diferentes e, por isso, reforço, não há receitas. acredito que é importante dizer que "morreu e não estará mais connosco". a pergunta que nos deixa de coração apertado vem logo de seguida: "então, mas onde está?" - e, é aqui, que entra a discórdia entre técnicos. a meu ver, não há mal nenhum com uma explicação como "está no céu, agora é uma estrelinha" porque "para suportar o real é preciso sonhar" (mário corso). como em qualquer outra coisa na vida, se a explicação for demasiado infantil para a criança, ela irá dar sinal, sentir-nos-emos ligeiramente embaraçados e seguiremos em frente para uma explicação mais realista. considero, no entanto, fundamental que se possa dar uma explicação sincera quanto à causa, ajustada à maturidade da criança, evitando explicações demasiado pormenorizadas.

mas há algo que me preocupa - o depois. quando explicamos que alguém nos morreu, dizemos que ficará para sempre na nossa memória. então porque é que, de repente, parece que nos esquecemos e queremos esquecer dela? (alerta ambiguidade) este não é o caminho! tudo nos lembra de quem perdemos (mais do que em vida, talvez, se é que isso é possível!). por isso, a morte tende a tornar-se um assunto tabu porque nós, impacientes, queremos retomar a "normalidade" e evitar as emoções "inúteis" como, a tristeza e a zanga, que nos limitam. por isso o que fazemos? deixamos de falar sobre quem perdemos ou até tiramos todos os vestígios que possam fazer-nos relembrar essa pessoa (como fotografias, objetos feitos ou oferecidos). ter presente as (boas e más) memórias, as aprendizagens, os significados, as brincadeiras, é extremamente terapêutico, especialmente, quando partilhado com alguém este sentimento tão íntimo e intenso que é a saudade - mesmo que isso envolva lágrimas, longos silêncios e abraços profundos e demorados.

a dor bloqueia-nos e fecha todas as janelas por onde a luz outrora entrara. leva-nos com ela para dentro do seu casulo, rodeado de memórias que nos confortam, mas nos deixam no vazio. e no vazio ficamos, connosco próprios e a nossa dor, que nos consome a cada dia, até que alguém nos bata à porta, uma e outra vez, e nos espere no lado de fora, para nos levantar pelas mãos e nos levar no colo de novo para o mundo; acolhendo-nos nos seus braços, com as nossas dores e pegando em cada pedacinho do nosso coração para o colar de novo - é esse o papel do adulto, deixar a criança sentir e ajuda-la a colar cada pedaço do seu coração partido. dê tempo e espaço a si, à sua criança, e à vida, para digerir tudo isto.

como não era possível trazer um texto sem uma referência literária, deixo-vos o livro da avó - o livro infantil escolhido, para pensar sobre o tema da perda. a perda é das maiores dores do ser humano; é tão inevitável como previsível; tão poética como trágica. a perda é a tristeza de quem amou e isso não é razão para se deixar de amar.

artigo escrito para a página Flying a teapot

marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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