o terror sem nome do bebé
em tempos senti que havia uma sensação generalizada de que a vida de um bebé era maravilhosa. os bebés parecerem ser uns "sortudos" porque, com as suas capacidades cognitivas ainda pouco desenvolvidas, escapam-se a tantos males comuns dos adultos, diziam-me: "eles não têm responsabilidades", "ao menos não acabam a pensar demasiado sobre nada", "que sorte, eles nem se vão lembrar do que viveram". mas, será que é mesmo assim?
o bebé humano é, de facto, um projeto inacabado, um eterno prematuro, uma vez que uma mãe humana não conseguiria sobreviver a um parto de um bebé completamente desenvolvimento. assim, a seleção natural antecipou o parto humano e, por isso, ao fim de 9 meses de gestação, o cérebro encontra-se ainda em desenvolvimento.
esta sua imaturidade é um pau de dois bicos. por um lado, deixa o bebé mais suscetível ao ambiente onde nasce, o que é uma das razões pelas quais temos caraterísticas que mais nenhum outro mamífero tem - porque temos a oportunidade de nos desenvolver não só in útero, como cá fora, com toda a interação social que isso acresce. por outro lado, esta imaturidade faz com que o bebé viva, até aos seis meses, um estado de dependência absoluta (descrito por Winnicott), no qual depende do adulto para sobreviver, não só do ponto de vista fisiológico, mas também do ponto de vista cerebral e emocional.
isto é importante porquê? porque precisamos de atender a que este estado de dependência absoluta, nesta idade tão precoce, deixa o bebé a sentir-se incrivelmente vulnerável e, com este tipo de vulnerabilidade, vem o risco - o risco de morrer. lembremo-nos de como, para nós adultos, é tantas vezes difícil sair da nossa zona de conforto. e, se quiser ser ligeiramente mais provocadora, lembremo-nos de como é para nós sentirmo-nos vulneráveis... agora imaginem sentir isso a cada segundo da vossa vida e ampliado 1000 vezes? porque é essa a experiência de um bebé que, a cada dia que passa, é exposto a diferentes estímulos - muitos, nunca antes experienciados. quão assustador não deve ser sentir-se à mercê de um mundo totalmente desconhecido? invadido por estas angústias que surgem de modo incompreensível e que o dominam?
assim, por detrás das suas necessidades insatisfeitas e das alterações que pressente, podem surgir ansiedades intensas e incontroláveis. estas ansiedades são angústias incompreensíveis para o bebé, são um terror a que se sente impotente e ao qual ele não consegue dar nome nem dar resposta. podem tornar-se um buraco negro de desamparo que o vai levando para longe, se ninguém conseguir resgatá-lo e acolhê-lo. perante sua a angústia, o calor do colo dos pais é essencial para o relembrar de que não está só e de que está tudo bem. o contacto pele a pele, corpo a corpo, consegue acalmar o bebé. sentir o bater do coração, o toque leve e macio da pele parece que funciona como um regulador da temperatura corporal, do ritmo cardíaco e da pressão arterial do bebé acalmando-o, regulando-o. se juntarmos os pozinhos mágicos do leite materno, conseguimos um nível de conexão e de relaxamento que acalma a angústia e a ansiedade do bebé.
o bebé pode não perceber os porquês das mudanças, mas sem dúvida que se apercebe delas, que as sente no seu corpo. o bebé pode não ter a nossa capacidade de raciocínio e de ligação lógica, mas é incrivelmente intuitivo e isso faz com que tenha uma grande sensibilidade ao meio que o rodeia. não é por acaso que um bebé tem uma resposta diferenciada à voz e ao rosto humano logo quando nasce e, mais tarde, ao da mãe; capacidades olfativas que o levam a discriminar e preferir o odor do leite materno; bem como uma série de comportamentos de vinculação (como chorar, sorrir, seguir com o olhar, agarrar-se, sugar, mover-se) que o levam a cativar e a procurar proteção. tudo isto para que o bebé consiga responder ao meio em constante mudança que o rodeia, às interações com os outros e para que consiga estabelecer a proximidade/distância da figura de vinculação, levando assim a um alívio da sua ansiedade e a um aumento da sensação de segurança.
todas as experiências que afetam o bebé são armazenadas na sua memória (essencialmente uma memória corporal e implícita) que possibilita assim a aquisição de confiança no mundo ou, pelo contrário, a falta dela. por isso, a consequência desta dependência absoluta nos primeiros meses do bebé é a sua necessidade de alguém que se adapte de uma forma quase absoluta a si, que o faça sentir que seguro e "segurado", acolhido e atendido, porque ele pode não se lembrar do que viveu, nem saber dar nome ao que sentiu, mas vai continuar a senti-lo dentro dele.
concluindo, a vida de bebé não é tão maravilhosa como tantas vezes pensamos. todos sabemos como ficamos aflitos por não determos o controlo de determinados eventos e situações na nossa vida, como ficamos perdidos quando não sabemos o que se passa dentro de nós. um bebé vive o mesmo, mas sem a nossa maturidade para pensar sobre isso, ficando tudo solto dentro dele e guardado sem qualquer sentido ou significado atribuídos...
a maravilha da vida de bebé depende muito de como ele é atendido. sendo já um ser humano tão sensível ao meio, ainda lhe é impossível controlar as suas angústias e dar-lhes nomes. por isso, é crucial que alguém consiga acolher e acalmá-las, dar nome e resposta ao que vai vivenciando, correndo o risco dele se afogar no terror sem nome que pode viver dentro de si. é crucial alguém que se sintonize de tal forma com ele que, no meio das ausências inevitáveis da vida, as presenças as superem.
bibliografia:
livro - Por que o amor é importante: como o afeto molda o cérebro do bebé de Susan Gerhard (2017).
livro - A Maternidade e o bebé. de Eduardo Sá (2004)
artigo - Mental health, attachment and breastfeeding: implications for adopted children and their mothers de Gribble, K. D. (2006) https://doi.org/10.1016/j.dcn.2019.100703