o que será que acontece se olharmos para dentro das nossas crianças pequenas e tentarmos perceber o que está a falhar na realidade para o virtual ser tão aliciante? claro que todos os aspetos que tornam estes dispositivos viciantes e atraentes pertencem ao domínio do real, mas não será aquilo que o acontece dentro das nossas crianças que as leva...
olhar e não ser visto
uma coisa é olhar para ti, outra é ser visto.* não temos noção do impacto desta diferença. não temos noção que, talvez, o impacto seja tanto maior quanto menor for a nossa idade, não porque com a idade precisemos menos, mas porque a capacidade de absorção do que nos rodeia é tão refinada quando somos pequenos que é emocionante observar tudo o que cabe num olhar. já pensaram: quantas palavras caberão dentro de um olhar? quão envolvente poderá um olhar ser? quão apaziguador poderá ser um cruzar de olhos com quem é importante para nós?
há uns tempos caminhava num centro comercial, de olhos inquietos a vaguear as várias montras à procura que algo dentro de mim reagisse ao que via. neste meu olhar que serpenteava os corredores, cruzei-o com várias crianças. crianças pequenas que, no meio de tanto estímulo e do vazio humano que os corredores evocam, procuravam um olhar. procuravam algo a que se agarrar, algo que as retirasse de si próprias e que lhe devolvesse ao seu habitat natural: a relação. estou certa de que não eram os meus olhos que procuravam, mas os meus foram uns dos que encontraram.
de uma forma metafórica, Winnicott, diz-nos que "um bebé não existe sem a sua mãe" e um dos caminhos que podemos percorrer para pensar esta frase é o de que um bebé não existe longe do olhar da sua "mãe" (i.e. figura de vinculação). tal como, talvez, também nós não existamos sem alguém que nos olhe, que nos procure conhecer e entender numa dimensão que vá além das palavras. o ser humano precisa deste contacto. precisamos de sentir essa conexão que somente encontramos nos olhos de alguém. precisamos dessa presença do outro, uma presença que nos encha por dentro e que nos faça sentir verdadeiramente vistos.
quantas vezes encontrarmos uns olhos que nos olhem de volta? quantas vezes as nossas crianças encontram essa reciprocidade de olhar que as faz sentir-se verdadeiramente vistas? podemos pensar em todas as vezes que o nosso dia-a-dia atarefado rouba a nossa atenção e rapta a nossa mente, deixando-nos com um olhar vazio que vagueia o exterior como quem vasculha o interior à procura de respostas. podemos pensar em todas as vezes em que algo se precipitou perante nós e nos roubo o olhar das nossas crianças. tudo isto torna-nos somente suficientemente bons, que é tudo aquilo que as nossas crianças precisam. podemos ainda respirar mais fundo e apaziguar o nosso coração tantas vezes "culpado" porque, por mais distraídos que possamos estar, as nossas crianças vão continuar a exigir o nosso olhar - pelo menos, enquanto tiverem esperança em recebê-lo de volta.
é incrível tomar consciência dos recursos com que o ser humano nasce. como, mesmo depois de rotulados como "mimados" e "exigentes", os nossos bebés continuam a reclamar aquilo que precisam - a nossa atenção. como parece que o berço ergue espinhos assim que os pousamos e eles choram a pulmões cheios porque nos querem envoltos neles. ou como, ainda pequenas, as nossas crianças não dão um passo sem estarem certas de que o nosso olhar recai sobre elas, confirmando a nossa aprovação dos seus movimentos exploradores, como se o nosso olhar fosse o prolongamento que precisam para se sentirem seguros.
curioso ainda, como há medida que vão estando mais confiantes de que esse olhar está lá, vão deixando de o procurar tanto, ao ponto de (quase) deixarmos de os olhar. deixam de chorar pelos nossos olhos, mas será que deixam de precisar deles? será que, em algum momento da nossa vida, deixamos realmente de precisar de sentir o olhar do outro? deixamos de precisar de senti-lo a cruzar-se com o nosso? de senti-lo a ler-nos a alma? a decifrar o que sentimos? o que precisamos? talvez não.
como um pré-adolescente me dizia no outro dia "a minha mãe até parece ver bem, depois é a cabeça que falha", como quem diz que, depois de olhar, há um passo maior a ser dado para alcançar verdadeiramente o outro, um em que parece que a cabeça, tantas vezes, não acompanha aquilo que é olhado.
talvez, ao crescermos, exigimos agora que esse olhar já nos saiba de cor ao ponto de, num pequeno relança, nos conseguir decifrar de fora para dentro. quando isso não acontece, uma grande tristeza junta-se à desesperança de ficar só com as nossas próprias coisas.
se os olhos são o espelho da alma, será que ela não vai enfraquecendo se deixar de ser vista? será que não vamos adoecendo sem o olhar do outro?
literatura:
livro - Mar Alto, de Caleb Azumah Nelson
* esta é uma frase retirada do livro Mar Alto
artigos recentes
serão os telemóveis os verdadeiros demónios?
este é um texto que escrevi para o blog Palavras Sentidas da Filipa Maló Franco. este que é o segundo texto desta série de reflexões sobre o tema, pode ser lido por aqui:
ollhando para dentro do adulto
se nos atrevemos a olhar para fora das crianças mas para dentro de nós, adultos, podemos pensar sobre a nossa necessidade crescente de apresentar estes aparelhos às nossas crianças - e isso sabemos que poderá ser demasiado intenso e agitar demasiado as águas da nossa estabilidade mental, inundar-nos de culpa… mas se queremos verdadeiramente pensar...