o que será que acontece se olharmos para dentro das nossas crianças pequenas e tentarmos perceber o que está a falhar na realidade para o virtual ser tão aliciante? claro que todos os aspetos que tornam estes dispositivos viciantes e atraentes pertencem ao domínio do real, mas não será aquilo que o acontece dentro das nossas crianças que as leva...
os braços que nos envolvem
falamos de braços e abraços constantemente e recomendamos com a facilidade como quem recomenda um ibuprofeno para a dor de cabeça e, talvez, tal como com a medicação, nem saibamos bem por que o fazemos, apenas que resulta. sentimos na pele a forma como os abraços nos acalmam o coração. sentimos na pele a forma como os braços enrolados à nossa volta nos conectam de novo, conosco e com os outros, como nos envolvem e nos cobrem a alma. mas, afinal, porque gostamos tanto de abraços?
comecei a pensar sobre este tema depois de ouvir o episódio #170 do podcast Terapia de Casal. neste episódio o Guilherme partilha como se sente bem com o peso do cobertor em cima e em como esse peso o ajuda a adormecer. mais tarde, o mesmo tema surgiu numa caixinha de perguntas no instagram do projeto @oteumalesono.
acredito que aquilo que explica este "fenómeno do cobertor" é a nossa experiência in útero. creio que não teremos certamente memórias vivas desse tempo, como aliás ninguém tem, contudo, nesses primeiros nove meses da nossa vida muito se passa e muito fica guardado dentro do nosso pequeno cérebro através daquilo a que se chama memória implícita - um tipo de memória a que não conseguimos (posteriormente) aceder a origem, mas que guarda a informação das sensações corporais das nossas experiências e que é ativada sempre que algo de semelhante acontece.
hoje em dia, sabe-se que os bebés in útero conseguem distinguir os sabores dos alimentos que a mãe ingere e mostrar preferências através das suas expressões faciais, bem como privilegiar a voz da mãe em detrimento das restantes. estas preferências sonoras e gustativas tendem a permanecer após o nascimento, o que nos mostra que a informação dos cinco sentidos vai ficando guardada em nós e que a vamos usando depois.
uma das principais caraterísticas desse tempo de gestação é que o vivemos fechados dentro do pequeno útero da nossa mãe. vemos nas ecografias os bebés enroladinhos sobre si próprios, o que faz com que todo o seu corpo esteja acompanhado e contido pela placenta e pressionado pelas paredes uterinas. durante os nove meses, o útero torna-se então um equivalente de segurança. ora, creio que o momento descrito pelo Guilherme no episódio, e partilhado por tantos de nós, é uma réplica desta vivência intrauterina, na qual o peso do cobertor nos permite reviver esta experiência de contenção uterina.
se repararmos, os bebés pequenos adoram estar ao colo porque, entre outros aspetos, sentem-se contidos nos braços de quem os agarra, longe do desamparo da imensidão e do vazio do mundo. mais, adoram estar em babywearing, enrolados nos panos, aconchegados e junto do corpo dos pais, porque também eles simulam esta que foi a sua realidade na gestação. a própria experiência de um abraço também traz consigo a sensação de alento, de contenção e de segurança para a maioria das pessoas. todas estas experiências são potenciadas pela sua semelhança às memórias implícitas que temos do nosso tempo de gestação e, por isso, tão apreciadas por nós.
diria, no entanto, que estas experiências que descrevo em cima, vão além da sensação de contenção do corpo e têm outro fator muito importante: o outro. todas elas implicam uma proximidade com um outro, seja o colo, o babywearing ou o abraço. o outro talvez seja dos fatores mais importantes aqui. é o outro que nos traz o lembrete necessário que complementa a sensação de contenção. é o cheiro do outro que nos tira de nós próprios. é o seu corpo junto ao nosso que nos relembra de que não estamos sós. é a presença do outro que nos tira do desamparo. o cobertor talvez seja uma espécie de autoregulação, onde sozinhos, encontramos um mecanismo de trazer para nós esta sensação de segurança. já o abraço, talvez seja uma forma de co-regulação, onde num encontro de dois corações, conseguimos reparar o nosso coração aflito.
ter um cobertor de 8kg em cima de nós ou os braços de alguém a envolver o nosso corpo, a conter-nos os movimentos é, de certa forma, um regressar ao nosso útero, a um lugar de segurança que vai além do que a mente consegue explicar. sente-se dentro de nós e altera-nos de dentro para fora em segundos.
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este é um texto que escrevi para o blog Palavras Sentidas da Filipa Maló Franco. este que é o segundo texto desta série de reflexões sobre o tema, pode ser lido por aqui:
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