os primórdios da empatia

16-01-2023

"não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti" está intimamente ligado ao "faz aos outros o que gostavas que te fizessem a ti". dois ditados bem populares e que, recorrentemente, ouvimos em qualquer contexto infantil. contudo, numa época social particularmente individualista e competitiva como a nossa, parece-me perigoso continuarmos a incentivar ao egocêntrismo.

sabemos que estes ditados, com uma raiz muito católica, têm o intuito de prevenir as nossas crianças (e adultos!) de fazer "más ações" e de, através de uma falsa empatia diria, manter-nos numa sociedade civilizada. vejamos as entrelinhas, porque elas falam-nos de muito mais... 

estes dizeres levam-nos a pensar sobre as consequências daquilo que fazemos, ficando inerente a ideia de uma certa punição, de uma espécie de karma que pune aqueles que não fazem o "bem" ou, por oposição, nesta linha de retribuição do universo, devêssemos fazer o "bem", não porque o queremos fazer, mas porque devemos e queremos ser recompensados. no limite, e tendo em conta este mecanismo de retribuição inerente a ambos, estamos a colocar o foco no resultado. aliás, na consequência das nossas ações, seja a recompensa o "garantir" que nada de mal nos aconteça, ou o fazer de tudo para que os outros retribuam na mesma medida que demos.

se olharmos com atenção, vemos que ambas as versões dão ênfase àquilo que é a experiência pessoal de cada um de nós. àquilo que cada um de nós aprecia e não aprecia. àquilo que cada um de nós valoriza. àquilo que cada um de nós necessita. àquilo que cada um de nós deseja, àquilo que cada um de nós é. por isso, creio que não é arriscado quando digo que o ênfase destes ditados está no "eu" e somente no "eu", num olhar egocêntrico, uma vez que fazer aquilo que nós gostamos/queremos, pode não ser o que o outro gosta/quer. 

assim, a perpetuação deste ditado, que se crê ser em prol de um mundo mais empático e civilizado, descarrila automaticamente quando olhamos para o que propagamos. será que numa sociedade tão competitiva queremos continuar a focar nos resultados? será que medir as nossas ações, agarrados ao receio dos nossos impulsos mais destrutivos e das consequências (para nós!) das emoções e dos nossos gestos espontâneos, é o caminho para a empatia? será que olhar o outro, sobrepondo-o a nós, em prol do "bem" será empatia? será que dar ao outro na esperança de um dia poder receber (isto é, cobrar!), é uma verdadeira relação empática? 

não é possível criar empatia e não sair de nós próprios.

a empatia é sair de nós próprios, entrar na pele do outro, com caraterísticas e contornos próprios. com uma história de vida, que podemos ou não conhecer, mas que não é a nossa. com intenções e inquietações que podemos, logicamente, nem compreender, mas que existem e devem ser respeitadas. empatia é não fazer ao outro aquilo que o outro não gosta. empatia é fazer ao outro aquilo que sabemos que gosta. empatia é sair de nós próprios e encontrarmo-nos com o outro, sem perdermos de vista o que é nosso e o que somos. 

sabemos que as crianças pequenas são (biologicamente) egocêntricas e, por isso, têm dificuldade em colocar-se no lugar do outro, perceber aquilo que sente e experiencia. deliciamo-nos quando o pequeno João, que gosta muito do seu peluche e tende a abraçá-lo fortemente quando se sente triste, o dá à sua amiga Maria quando a vê triste. isto são os primórdios da empatia: o impulso em fazer algo para ajudar, contudo aquilo que uma criança pequena consegue dar para confortar alguém é o que conhece da sua experiência e, tal como o ditado diz, aquilo que gostava que lhe fizessem.

quer dizer então que o João está a identificar aquilo que a Maria sente (reconhecimento emocional), mas não está a vê-la (porque não consegue ainda descentralizar-se). não está a perceber a causa do que sente, nem qual a sua necessidade naquele momento, colocando-se a si próprio nestes espaços em branco da sua compreensão. com o crescimento, o João irá conseguir colocar-se no lugar do outro. o João irá perceber que há coisas ele gosta e que as outras pessoas não, como a sopa de espinafres da escola que deixou a Maria triste. o João irá perceber que ele gosta de abraços quando está triste, mas que há quem precise de colo como a sua amiga Maria. irá perceber que quando não diz "bom-dia" ao seu amigo Manel ele fica triste, mesmo que, se o Manel não lhe disser, ele não fique. 

estes ditados, que tanto propagamos, parecem que nos colocam permanentemente nesta fase egocêntrica do desenvolvimento em que o João se encontra, onde parece que apenas conseguimos olhar para nós próprios e para as nossas necessidades, pressupondo então que só conseguimos "fazer o bem" motivados por algo mais. contudo, nós conseguirmos mais, porque quando o foco é o resultado, a recompensa, não estamos a falar de empatia. 

de forma geral, a partir dos quatro anos, as crianças já conseguem entender que os outros pensam, desejam ou acreditam é em função das suas próprias representações mentais sobre o mundo. isto quer dizer que as crianças acabam por entender que cada individuo tem os seus próprios estados mentais, que podem diferir dos seus e, por isso, a compreensão dos seus comportamentos e reações implica um conhecimento dos desejos e crenças do outro. contudo, esta capacidade implica, primeiramente, a maturação de determinados circuitos neurais que conduzem à capacidade cognitiva de descentralização e previsão de comportamentos (a chamada Teoria da Mente). mas não é o único fator!

o essencial é sentir empatia na pele.

queremos que as nossas crianças sejam empáticas com os outros? pensemos se somos com elas. pensemos se somos sequer capazes de nos colocar na posição delas e dar-nos conta das suas necessidades e preferências. lembremo-nos como reagimos quando nos dizem que estão tristes porque o pai hoje não dormiu em casa. lembremo-nos como reagimos quando nos dizem que a Sarinha hoje não quis  brincar com elas. lembremo-nos como reagimos quando procuram o nosso colo quando nos reencontram da escola, enquanto estamos com pressa para chegar ao carro e ir (finalmente!) para casa. lembremo-nos como reagimos quando lhes dizemos que têm de ir dormir, mas a mãe e o pai vão ficar acordados. lembremo-nos como reagimos quando nos pedem para ver (mais!) um desenho que fizeram nas escola, enquanto temos a mente cheia de dilemas do trabalho. lembremo-nos como reagimos quando queremos que vão fazer uma sesta, quando finalmente os dois pais estão em casa ao mesmo tempo e "disponíveis". 

pensemos se somos capazes de ajustar as nossas expectativas à individualidade das nossas crianças e àquilo que podemos esperar a cada uma das etapas do seu desenvolvimento. lembremo-nos de como as obrigamos a ir praticar o alfabeto, quando tudo aquilo que queriam era brincar com os animais. lembremo-nos de quando queremos que durmam a noite toda na sua cama, quando o medo de ficar sós ainda é tão grande. lembremo-nos de quando lhes dizemos que não "são bonitas" porque continuam a fazer xixi na cama e isso lhes parte o coração. lembremo-nos como ralhamos com elas quando bateram no amigo que lhes tirou a boneca, apesar de ainda não saberem autorregular-se. lembremo-nos como lhes pedimos parar para de chorar, porque estão a ser dramáticas, mas somos nós que não entendemos a intensidade da sua experiência

pelo que me preocupa que, às vezes, pareça que o nosso olhar as trespassa. pareça que, às vezes, o nosso olhar não as consegue fixar bem, como uma lente mal calibrada, obstruída com uma série de teorias e opiniões (como até este artigo!) que nos perturba e nos afasta da curiosidade primária em conhecê-las e nos enche de saberes e certezas. 

parece que, às vezes, não conseguimos realmente fazer as nossas crianças sentirem-se vistas e atendidas, pelo que não há como dar aquilo que não se tem.

as nossas crianças só conseguem ser empáticas, se tiverem vivido essa empatia na pele. as nossas crianças, mesmo já sendo biologicamente capazes, só conseguem sair de si próprias e colocar-se na posição do outro, isto é, de genuinamente interessar-se pela experiência do outro, se tiverem uma constante experiência de se interessarem por si. não é levando-as a recear as suas "más ações", que tantas vezes, são apenas demonstrações de zanga, imposições de limites e, dificuldades de autorregulação; ou a lembrá-las de como irão ser gostadas se se comportarem de determinada maneira, às vezes chegando a sobrepor o outro a si próprios, outras a cobrar tudo aquilo que dão, que estimulamos a sua capacidade empática. 

concluindo, os primórdios da empatia talvez estejam na empatia em si, no sentimento de ser contido, acolhido, de ser visto e olhado com olhos de ver, de sentir uma curiosidade genuína por aquilo que as habita por dentro (do nosso "melhor" ao "pior") e que vai além do óbvio que mostram. só quando nos sentimos o centro do mundo de alguém, podemos ousar olhar para o lado e fazer de um outro alguém o centro do momento.

PS: estas crenças que passamos às nossas crianças, por meio destes ditados, são apenas a ponta do icebergue da complexidade do desenvolvimento humano, pelo que, por si só, a sua propagação pode não ter efeitos intensos quando se interliga com outros fatores das suas relações. 



literatura técnica:

Dunn, J. (2000). Mind-reading, emotion understanding, and relationship. International Journal of Behavioral Development, 24, 142-144. 


marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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