só queremos ser amados

27-06-2023

conversava há uns dias com uma técnica, que trabalha a parentalidade, sobre este tema. falávamos da facilidade com que julgamos e rotulamos os comportamentos das crianças, da facilidade com que lhes impomos uma conotação negativa, de mau comportamento, de má educação, de desafio até. acredito que ficamos presos com esta interrogação na nossa cabeça a martelar incessantemente: se todos queremos ser amados, então porque é que tantas vezes os comportamentos das nossas crianças parecem que nos dizem o contrário?


é claro, e se não o é ainda, deixem-me clarificar: as crianças só querem ser gostadas. aliás, diria que cada um nós só quer sentir-se amado pelo outro. gostamos de nos sentir valorizados, de sentir que pertencemos a alguém, que temos quem nos apoie quando nos vamos a baixo, alguém que consiga ler-nos nos olhos a dor que nos envolve por dentro, alguém que consiga dar nome, ou que esteja connosco enquanto procuramos dar nome, ao que nos aflige.

se todas as crianças querem sentir-se amadas, podemos pensar que elas vão aprendendo com a sua experiência que corresponder-nos é um caminho para o conseguirem. vão olhar-nos nos olhos e ver como nos entusiasmamos e como nos enchemos de orgulho quando elas conseguem ser e fazer tudo aquilo que imaginámos para elas - seja isso repetir inúmeras vezes seguidas a palavra "áua", enquanto nos rimos às gargalhadas, ou ficar sentadinhas no sofá até o avô chegar e agradecer-lhes no final. as nossas crianças farão tudo para nos agradar - que isso que nos relembre o poder que temos sobre elas e o seu desenvolvimento. 

partindo deste principio, parece quase impensável então que as crianças tenham comportamentos que fujam a este ideal, o ideal dos adultos com quem estão, sem que seja por pura maldade (será que ela exista nas crianças?). talvez por isso, nos sintamos desafiados e incrédulos com estes comportamentos. talvez por isso, fiquemos tentados a rotular e a julgar as nossas crianças, como se desafiassem as leis da gravidade, mas diria que somos nós que estamos a ler mal a situação. 

ora vejamos, estou atualmente a ler uma distopia que se chama "escola para boas mães". vou mesmo no inicio, mas li um excerto que me recordou este tema:

Harriet não deixa Frida pousá-la no chão. Olha a assistente social com olhos assustados de sobrancelhas erguidas. Frida conhece aquele olhar. Põe Harriet no chão. - Desculpa bebé. Temos de brincar. Podemos brincar para a senhora simpática ver? Por favor bebé. Por favor. Vamos brincar. Harriet tenta subir para o colo de Frida e, quando esta lhe dá apenas um abraço rápido e insiste para que ela escolha um brinquedo, começa a chorar. As suas lágrimas transformam-se rapidamente num choro incontrolável. Atira-se para o chão, de barriga para baixo, a bater com as mãos e os pés, a gritar como uma louca, gritos inimangináveis. Frida volta-a de costas e dá-lhe beijinhos, implorando que se acalme (...). Harriet bate em Frida e arranha-lhe a cara. (...) - Olha para mim. Não gosto disso. Não se bate na mamã. Não se bate em ninguém. Tens de pedir desculpa. (...) Por favor, Sra. Torres, importa-se de se sentar à mesa? Está a deixá-la nervosa. (...) A mulher ignora o pedido (...) - Harriet, podemos ver-te brincar? Brinca com a mãe, sim? Harriet arqueia as costas. Contorce-se para se libertar de Frida. Passa ao ataque. Não há tempo para a impedir. Frida vê horrorizada Harriet cravar os dentes no braço da assistente social (...) Todas as crianças serão tão inconstantes como ela?.

ao lermos este pequeno excerto, vemos um pouco da angústia que esta mãe, que estava a ser avaliada pela assistente social, estava a viver e podemos imaginar aquilo que aquela técnica não deve ter ficado a pensar, uma vez  que os comportamentos agressivos, em especial, são muito mal compreendidos pela sociedade. acham que esta bebé de dois anos não se enquadra dentro desta ideia de que todas as crianças procuram ser amadas, de que todas as crianças procuram corresponder? claro que se encaixa! então o que é que aconteceu aqui?

dando algum contexto para compreender a situação, estamos a falar de uma bebé de 2 anos que não vê a mãe há mais de uma semana. temos uma mãe que está proibida de ver sua bebé que vivia desde sempre consigo. temos uma avaliação de uma assistente social às capacidades maternais da mãe. temos um objetivo imposto pela assistente social: brincar com a bebé. o problema começa quando temos uma bebé e uma mãe que estão separadas há imenso tempo e que estão a morrer de saudades uma da outra. temos uma bebé que tudo o que queria era estar com a sua mãe, encostada ao seu corpo, bem agarrada como um coala, para garantir que nunca mais aquela mãe fica longe de si. temos uma bebé entusiasmada, mas insegura. temos uma mãe assustada e nervosa. tudo aquilo que nenhuma quer fazer naquele momento é brincar. 

nesta situação, a bebé Harriet não consegue tentar corresponder ao que lhe é pedido pela mãe. o nível de angústia que vive dentro de si deve ser tão alto que bloqueia qualquer capacidade para corresponder. além do mais, aos dois anos não temos grande capacidade de autoregulação e, naquele momento, tudo o que ela precisava era de ser co-regulada. será que é a bebé que está a ser mal-educada e mal-comportada ou são os adultos em cena que não conseguem alinhar-se com as necessidades da criança?

é isto que eu acredito que acontece quando falamos de crianças "mal-educadas" ou "mal-comportadas". acredito que saltamos rapidamente para um julgamento que não é real. acredito que estas são crianças que vivem, dentro de si, um nível de angústia tão grande que não conseguem (e ainda bem!) sobrepor as suas necessidades (sejam elas quais forem!) às do outro. se uma criança está tão desregulada assim, que tem comportamentos que julgamos, não é porque quer, é só porque está num ponto onde já não consegue mais preocupar-se se está a corresponder-nos, porque está inundada de mal-estar. 

se todas as crianças procuram ser amadas, e os seus comportamentos parecem indicar-nos o contrário, é porque nós precisamos de mudar as lentes com que as olhamos e precisamos de perceber exatamente o que está a acontecer dentro delas. somos nós que temos as nossas expetativas desajustadas? somos nós que estamos a exigir mais do que elas conseguem dar? somos nós que não vemos a aflição que vai dentro delas e que não as permite fazer diferente? pensemos antes de rotular. pensemos antes de julgar. precisamos de mais curiosidade sobre o que se passa dentro das crianças, porque elas não são mini-adultos.


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marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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