talvez seja o enquanto que faz as nossas crianças pegar nos ecrãs

07-11-2024

o que será que acontece se olharmos para dentro das nossas crianças pequenas e tentarmos perceber o que está a falhar na realidade para o virtual ser tão aliciante? claro que todos os aspetos que tornam estes dispositivos viciantes e atraentes pertencem ao domínio do real, mas não será aquilo que o acontece dentro das nossas crianças que as leva a pegar nestes aparelhos, tão ou mais importante do que criar limites que as policiam?

não me preocupa que os usem, nem tão pouco o tempo que passam lá. preocupa-me sim a utilização que fazem destes aparelhos.

talvez olhar para os momentos em que as crianças pegam nestes aparelhos possa nos ajudar a pensar sobre o tema. retomando o artigo que escrevi para a newsletter da Clínica Digital da Filipa Maló Franco, será que os usam mais no carro enquanto vão para a escola? em casa enquanto comem? enquanto esperam pela hora do banho? no café enquanto os pais conversam? no sofá enquanto os pais estão a ver televisão? nos recreios enquanto os amigos brincam a uma brincadeira que eles não querem? enquanto esperam o João pestana chegar?

talvez seja o enquanto que faz as nossas crianças pegar nos ecrãs. talvez seja o enquanto que as deixa a tremer por dentro. talvez seja o enquanto que as deixa inquietas. talvez seja o enquanto que as deixa angustiadas. o problema com os enquantos da vida talvez seja o vazio para que as remete e a forma com esse vazio é preenchido. quando na nossa mente surge conteúdo desligado, sem nexo ou sentido, como tende a ser a de qualquer criança, por vezes angustiante e assustador, não queremos ficar ali, certo? elas também não.

não me refiro às crianças psicopatologicamente doentes, não, falo de todas as crianças. não nos podemos esquecer que crescer é assustador. exige um processo de constante elaboração do que se passa no mundo - algo que nem sempre vem com as legendas de que precisam para o fazer. a sua fantasia está ao rubro e preenche todos os espaços em branco com cenários que podem ser muito assustadores, ficar sozinhas consigo próprias nem sempre é muito agradável.

retomando o pensamento, não conseguindo dar sentido ao que se passa nas suas mentes e não havendo quem esteja disponível para as ajudar a fazê-lo, as nossas crianças vão querer fugir de ser invadidas por tudo o que vai dentro de si e vão para fora, de preferência para o que as levar para mais longe de si possível. os ecrãs fazem este papel na perfeição!

os aparelhos tecnológicos permitem-lhes não só desligar-se de si próprias e do que sentem, mas as características das aplicações permitem ainda, de uma forma muito clara, contornar toda e qualquer fonte de frustração e inundar o seu interior com gratificação. porque haverão as nossas crianças de ficar angustiadas com o que vai dentro de si, se podem de uma forma tão fácil e lúdica, fugir-lhes?

por isto, não me preocupa que as crianças pequenas usem estes aparelhos, nem tão pouco o tempo que passam lá, para ser sincera. preocupa-me sim a utilização que fazem destes aparelhos, o papel que têm na sua vida. já dizia Winnicott que não importa o objeto em si, mas o uso que lhe é dado e as nossas crianças pequenas parecem estar a fazer um uso destes aparelhos que nos deixa a pensar.

os vazios que os enquantos despertam deveriam ser vividos com a sua criatividade interna para tolerarem estar em contacto com o que sentem dentro de si e a elaborar tudo isso de uma forma simbólica; e deveriam qualificar-se como momentos ideais para evocar na sua mente quem está ausente e assim conseguirem sentir-se seguros quando estão sós

  • ora, quando ao invés deste vazio usam os ecrãs enquanto os pais conversam no café, não estão a deixar que o seu aborrecimento ative a sua criatividade, estão a fugir desse sentimento. 
  • quando procuram um ecrã quando os amigos estão a brincar a uma brincadeira que elas não querem, não estão a gerir dentro de si essa frustração e desilusão, e ficam na omnipotência distantes sem aprender a gerir o conflito. 
  • quando pedem um ecrã mesmo antes de ir dormir e querem adormecer com ele, fogem de todos os pensamentos assustadores que chegam na hora de deitar e fingem estar menos sós com as vozes que os acompanham enquanto fecham os olhos.

como poderão as nossas crianças aprender a viver as emoções de valência emocional negativa se fogem dela? como poderão as nossas crianças aprender o que vai dentro delas se não mergulham em si? como poderão as nossas crianças aprender a estar sós se permitimos que fujam à sua solidão? como poderão as nossas crianças desenvolver a sua criatividade e capacidade de se entreter quando estão sempre a procurar fora o entretenimento?

e onde estamos nós, adultos, nestes momentos? onde estão os brinquedos dentro das nossas malas para quando se se aborrecem? onde estão as nossas palavras contentoras quando se frustram por não quererem brincar àquilo? onde está a nossa ajuda à negociação ou à tolerância à diferença? onde está a nossa companhia e colo na hora de ir dormir?

nota: decidi realçar aquelas que são as minhas preocupações com as crianças pequenas, aquelas que estão em desenvolvimento e que não são neurodivergentes, e que se vão socorrendo dos ecrãs por causa dos conflitos naturais e expetáveis da idade. 

este é o terceiro texto de uma série de reflexões sobre o tema. lê os textos anteriores aqui:

enquanto o problema está fora

o debate em torno dos telemóveis e dos ecrãs tem vindo a amplificar-se. talvez tenhamos finalmente aceite que as tecnologias vieram para ficar e vão fazer parte da nossa vida e do desenvolvimento das nossas crianças. por isso, discute-se as idades ideais para apresentar, horários e tempos para assistir e todo o tipo de recomendações para guiar os pais e os educadores no manejo destes aparelhos que são tratados como sendo o demónio em terra (...)

continua a ler aqui 

Serão os telemóveis o verdadeiro demónio?

Quando vemos afinal as nossas crianças a pegar no telemóvel? No carro enquanto vão para a escola? em casa enquanto comem? Enquanto esperam pela hora do banho? No café enquanto os pais conversam? No sofá enquanto os pais estão a ver televisão? Nos recreios enquanto os amigos brincam a uma brincadeira que eles não querem? Enquanto esperam o João pestana chegar?

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marcia arnaud | psicóloga clínica | 2024 | Todos os direitos reservados
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