uma conversa com a tristeza
quantos de nós vão a correr ter com uma criança quando a veem chorar? quantos de nós tentamos acabar rapidamente com o seu sofrimento (e o nosso também, sejamos sinceros!), acolhendo este pequeno ser nos nossos braços? e o que é que costumamos dizer? isso mesmo que está a pensar: "está tudo bem! já passou! não chora, sim? pronto... que lindo/a menino/a!"? mas será que a tristeza desaparece assim? quase nunca...
este primeiro impulso é mais forte do que todos nós, é certo, mas já fantasiaram sobre o que se passará na cabeça das nossas crianças e no sentido (literal) destas palavras que lhes dizemos? imagino algo do género: "ora se me está a doer, como é que me podem dizer que já está tudo bem e que já passou?! se calhar devo mesmo parar de chorar (?) será que já não sou mais lindo/a?". as nossas palavras, com a melhor das intenções, levam as nossas crianças a tentar esconder essa tristeza, bem fundo dentro de caixinhas na sua cabeça, para fazerem aquilo que lhes pedimos, serem crescidas e meninas/os lindas/os (como nós gostamos delas). assim, ganham medo, medo da tristeza, medo do que farão com ela, medo do que acontecerá quando ela aparece e de como os outros lidarão com ela.
é um facto que a tristeza de uma criança deixa-nos assustados, aflitos até. ver os nossos - frágeis, tristes e a chorar - dói na alma com cada lágrima que lhes cai e a cada grito, deixando o nosso coração apertadinho e quase sem conseguirmos respirar. se calhar é por tudo isso que a tristeza é das emoções menos acarinhadas por todos e, pelos pais em particular. temos de aprender a enfrentá-la, sem medos, porque ela, como qualquer outra emoção, serve para comunicarmos algo ao outro. é através da tristeza que expressamos que algo não está bem connosco e, essencialmente, é através dela que mostramos que precisamos de ajuda, conforto, e, por isso, é essencial para procurarmos o outro para nos apoiar.
mas o que é que podemos fazer com a tristeza, afinal? como acho que qualquer conversa sobre emoções fica bem mais acolhida com um livro infantil, a minha sugestão deste mês é quando a tristeza chama de eva eland onde, com as suas delicadas ilustrações, nos leva num caminho a dois: nós e a tristeza.
é importante mostrar que percebemos que a criança pode estar a sentir-se assim, que está tudo bem em sentir-se triste - isto é, é importante validar a sua experiência emocional e, depois sim, tentar perceber de onde vem essa tristeza. se muitas vezes a razão da tristeza é nos conhecida, porque é uma tristeza reativa a algo concreto do nosso conhecimento, existirão muitas outras vezes cuja origem é desconhecida de todos. quando a criança reconhece o que está a sentir - que está triste - não há nada melhor do que perguntar-lhe diretamente a causa. sei que achamos que as crianças não têm capacidades para falarem das suas emoções (ou de emoções, em geral), mas elas darão a resposta adequada à sua maturidade e, aí, parte de nós tentar trabalhar essa resposta. algo importante: não negar a emoção da criança! não desvalorizar o que está a sentir! ajudá-la a perceber de onde vem e o que pode fazer para deixar de se sentir assim (evitemos a distração, porque não será solução, obviamente!). acima de tudo, a criança precisa de se sentir compreendida e acolhida na sua experiência emocional e ajudada a encontrar soluções.
no entanto, a maioria das vezes, as crianças não sabem que estão tristes. o que devemos fazer aí? traduzir os seus comportamentos! o papel mais importante, dos adultos, é fazer a tradução daquilo que não é expresso, isto é, ler e traduzir os seus comportamentos.
"sabes, às vezes não conseguimos parar um segundo quietos... parece que temos sempre de nos estar a mexer de um lado para o outro, a fazer alguma coisa, a brincar, no tablet, a falar... muitas vezes fazemos isso porque estamos tristes e não queremos parar, para não sentir essa coisa estranha dentro de nós, para não pensarmos sobre isso..."
a tristeza pode ser difícil de detetar nas crianças, principalmente porque estamos à espera que se expresse da mesma maneira como nos adultos. esquecemo-nos que as crianças ainda estão em crescimento e que, por isso, a sua forma de expressar as emoções é ainda imatura e, tendencialmente, não-verbal. a tristeza chega sem avisar e mostra-se nos nossos olhos com cada lágrima que deles escorre ou nos olhos secos, com um olhar vazio. manifesta-se na dor de barriga que nos faz querer ficar aninhados na cama ou na agitação do corpo que não nos deixa parar um segundo, aproximando-nos e afastando-nos do outro. surge no coração quando parece que ele foi partido aos pedacinhos e que não há conserto possível. vem nas palavras aguçadas de uma rabugice imponente (e opositora!) que teima em deixar-nos zangados. está na metamorfose em monstro das bolachas, devorando tudo o que conseguimos, ou na falta de interesse na comida. está nas febres altas ou nas inflamações repetidas. aparece nas ausências em viagens à lua ou na dificuldade em seguir uma mosca com o olhar.
as crianças ainda não têm capacidade para fazer a ligação entre os seus comportamentos e as suas emoções (sentindo-as como duas coisas independentes entre si) e, muito menos, de traduzi-las por palavras. cabe aos adultos auxiliar este processo, ensinar que quando nos sentimos de determinada forma, podemos nos comportar de acordo com esse sentimento. a lista de comportamentos associados à tristeza é bastante variada mas, a chave é (sempre!) conhecer a criança e perceber como é que, aquela criança em particular, tende a manifestar-se.
à medida que vão crescendo, o exercício deixa de ser tanto o adulto a "adivinhar" o que a criança está a sentir, mas sim o adulto a estimular a criança a ser ela a perceber o que sente. o cérebro começa a evoluir e a criança começa a conhecer-se e a conseguir fazer associações causais entre os eventos e os seus sentimentos; entre aquilo que sente e aquilo que se passa no seu corpo; entre aquilo que sente e os seus pensamentos.
"tenho me apercebido que tens estado assim um pouco diferente. como é que te sentes? porque é que será que tens te sentido assim?"
pode parecer um processo difícil este de ler as emoções e os comportamentos das crianças, mas nunca estamos sozinhos. partimos do princípio de que tudo o que é em excesso e prolongado no tempo é sinal de alerta. sempre que sentirmos algo de estranho podemos (e devemos, arrisco!) pedir ajuda a um profissional - seja um psicólogo, um pedopsiquiatra ou a um pediatra. deixemos que a tristeza faça o seu papel nas nossas vidas, deixemos de ter medo que ela surja e tentemos entendê-la.
artigo escrito para a página Flying a teapot